LAVAGEM
DO BONFIM: POLÍTICA, ECONOMIA E TOLERÂNCIA RELIGIOSA
Rosivalda
dos Santos Barreto1
Lavagem
do Bonfim, quanta saudade ao ler o texto postado no blog Religiões
Afro-Brasileiras e Política! Qual motivo! Primeiro por estar
afastada da minha terra natal há 19 meses, por conta da seleção no
mestrado em educação brasileira, na Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Ceará. Segundo ao verificar que nos últimos
40 anos, as festas populares em Salvador sofreram um processo de
adulteração em termos interesse privado e atrações, tempo em que
segrega os participantes. Podemos dizer um ‘Apartheid’. A saudade
serve como pano de fundo para refletir a cerca da “evolução” da
Lavagem do Bonfim, desde a minha infância. Sintetizarei aqui pontos
relevantes sobre a Lavagem do Bonfim e as relações políticas,
sociais, econômicas e turísticas que a envolvem, enredadas pelo
capitalismo racista antinegro brasileiro.
É
digno de nota que a primeira Lavagem oficial do Bonfim data de 1804 e
que se distingue da Festa do Bonfim. A festa religiosa, católica, do
Nosso Senhor do Bonfim acontece no segundo domingo do mês de janeiro
depois da Festa da Lapinha2,
em Salvador – BA. Compõe a comemoração o novenário solene com
exposição do Santíssimo Sacramento.
A
imagem de Cristo crucificado chegou de Lisboa à Salvador por via do
oficial da Armada Portuguesa, Teodósio Rodrigues de Farias, em
cumprimento a uma promessa. Ficou abrigada de 1745 a 1754 na Igreja
de Nossa Senhora da Penha, no bairro Monte Serrat, península de
Itapagipe, na Cidade Baixa, até sua transferência com uma grande
procissão para o Alto do Bonfim, denominado Colina Sagrada, onde foi
construída a Basílica do Bonfim. A esse santo são atribuídas
inúmeras graças o que resulta numa grande peregrinação à sua
igreja. A caminhada até a Colina Sagrada é a representação da fé
do povo baiano em comprimento às promessas decorrentes da graça
alcançada. Nós baianos costumamos dizer: - Quem tem fé vai a pé!
A
Lavagem da Igreja do Bonfim iniciou quando os escravizados eram
obrigados pelos membros da Irmandade dos Devotos Leigos, a lavarem a
igreja para a realização da Festa do Senhor do Bonfim. Um paradoxo,
os escravizados lavavam a igreja para os brancos agradecerem ao
Senhor do Bonfim as graças alcançadas. Concomitante se explicita
uma atitude racista por parte dos e intolerante dos cristãos
católicos, mas de tolerância por parte dos africanos e
afrodescendentes. Tolerância uma característica da população
africana como afirma Ki-Zerbo (2006)3
e da afrodescendente segundo (SOARES, 2011)4.
É
importante notar que o ritual religioso católico é considerado
sagrado, e o do povo de santo e preto (a Lavagem), com as barracas e
Festa de Largo são entendidas pela mídia e elite branca como
profana e supersticiosa. A dicotomia ocidentalizada e a mentalidade
colonializada impede a compreensão da cosmovisão africana na
expressão popular da festa. Não concebe a interação das ações
presentes na religiosidade de base africana, a coletividade, onde
estão presentes a música e a alegria como mecanismo de
agradecimento e ligação com Deus. Portanto, podemos compreender que
a Lavagem do Bonfim é uma ressignificação da população preta,
que no decorrer do tempo se popularizou e ganhou o mundo. Uma
demonstração da capacidade de criação e superação dos
afrodescendentes diante de uma situação de racismo antinegro,
exclusão, subalternização.
A
Lavagem do Bonfim era e continua sendo intensa e se popularizou mais
que a Festa do Bonfim. Tinha e tem a participação de populares,
pessoas do candomblé, depois de alguns anos a de turistas. Na década
de 50 as baianas foram proibidas pelas autoridades eclesiais de
adentrarem à igreja, desde então lavam apenas os degraus. Fora dos
portões a população preta ainda assim continua a sua profissão de
fé religiosa a Oxalá.
As
baianas eram e são imprescindíveis no cortejo. Suas indumentárias
eram e são as usadas nas festas públicas do candomblé. São saias
rodadas, batas, ojás e pano-da-costa bem engomadas, alvíssimos em
homenagem a Oxalá e ao Senhor do Bonfim. As quartinhas5
transportam flores com os talos imersos em água de cheiro, para
purificar os participantes da festa, são as águas de Oxalá. Oxalá
e Senhor do Bonfim são entidades religiosas distintas, dessa forma,
fica explícito o exercício da tolerância religiosa dos
afrodescendentes candomblecistas. A Lavagem do Bonfim se notorizou
pela capacidade da população preta, oriunda do candomblé exercitar
a democracia e a liberdade religiosa.
A
Festa e a Lavagem do Bonfim são momentos especiais de agradecimento
dos devotos de Oxalá e do Senhor do Bonfim pelas graças alcançadas.
Complementaridade, cumplicidade e incorporação das benesses
existentes em outras religiões resignificadas pelos
afrodescendentes. Obatala é o poder genitor masculino. Representa a
cor branca, o ar, a prata, as grandes árvores e o sêmen,
ohum-omokurin (LUZ, 2000)6.
Nas
décadas de 60, 70... As carroças ornamentadas com flores e
bandeirolas e os trios elétricos se organizavam em filas na Avenida
Contorno, aguardando a saída do cortejo com as baianas, da frente da
Basílica da Nossa Senhora da Conceição da Praia. O cortejo era
seguido pelas carroças, trios elétricos, batucadas até a Baixa do
Bonfim. As barracas eram rústicas, armadas com caibos7
de madeira, cobertas por lona, com bancos de madeira, todos
coloridos. Elas tinham identidade, nomes, nomes de santos e orixás.
Era também um ponto de reencontro de pessoas amigas. Depois de
vermos a Lavagem, sentávamos as crianças bebiam refrigerantes e os
adultos cervejas. Dali saíamos do desfrute lúdico às 16 horas,
isso os participantes mais reservados. Mesmo assim a festa
continuava. As cervejas e refrigerantes de vidro, atuais retornáveis,
eram vendidos nas barracas e essas também tinham som ao vivo de
samba, os conhecidos sambões. Atualmente são substituídos por uma
aparelhagem de som potente, com as músicas massificadas veiculadas
pela mídia. As barracas mais famosas eram Juvená, Robertão, a 2 de
Fevereiro, barraca frequentada por homossexuais, esta última sofreu
o horror da violência policial até sua extinção.
Hoje
o trios elétricos foram proibidos pela prefeitura de acompanharem o
cortejo com a justificativa de problemas relacionados à violência e
para a manutenção da tradição. As carroças foram proibidas, por
que Federação Baiana de Entidades Ambientalistas Defensoras dos
Animais, afirma que a participação dos jegues no cortejo é um
crime de mau trato. Outra alegação foi de agressão ao equilíbrio
ambiental por causa das fezes dos animais que ficavam em determinados
locais do percurso. Algumas batucadas e o bloco afro Ilê Aiyê
ainda alegram os participantes da Lavagem do Bonfim até o Largo de
Roma.
A
parada obrigatória dos participantes da Lavagem do Bonfim para
degustação da culinária e bebidas baianas eram antigamente a feira
de Água de Meninos e hoje o Mercado do Peixe, e a feira de São
Joaquim. Vendedores ambulantes eram raros no percurso da festa e na
Baixa do Bonfim, nesse local apenas as barracas eram necessárias,
por que elas eram os pontos de encontro. A festa se estendia até o
domingo se estendendo até a Segunda-feira Gorda da Ribeira.
Por
que faço uma referência ao passado e presente? No passado os
interesses econômicos e o capitalismo não tinha se instalado. O
lúdico não era o fim último das festas populares de Salvador. Os
governos municipal e estadual não tinham vislumbrado o potencial
turísticos, nem os políticos atingirem seus eleitores, muito menos
o incentivo ao consumo nos festejos baianos. As festas não tinham o
valor de mercado.
Não
eram cobradas taxas nem havia perseguição por parte da prefeitura
aos barraqueiros. Com a justificativa de modernizar e modificar o
visual para atrair o turista, sob a alegação de que as barracas
‘eram muito feias’, e que os barraqueiros não pagavam impostos,
esse era o termo. Os barraqueiros desde então foram obrigados a
alugarem toldos que custavam 600 reais. Notadamente esses
trabalhadores das festas de Largo de Salvador, os barraqueiros
tradicionais e pretos perderam a oportunidade de trabalhar nas
festas, muitos deles se converteram vendedores ambulantes em todo o
trajeto da festa desde a Praça Cairú até o Largo e Baixa do
Bonfim.
Foi
proibido o comércio de cervejas em garrafas, por questões de
segurança. A prefeitura afirmava que as garrafas provocavam mortes
por causa do crescimento da violência. Surgem então as latinhas!
Agora o mote é consumir, o lúdico, o espiritualidade, a
religiosidade e a confraternização ficaram um tanto relegados.
Comprar uma latinha gelada e seguir andando sob o sol escaldante de
Salvador até a colina Sagrada, não foi de tudo ruim para os
participantes da festa que desfrutavam da Lavagem. Mas, sem barracas,
com toldos e sem bancos para as pessoas sentarem os participantes
ficam vagando sem destino com sua latinha de cerveja na mão.
Confraternizar com amigos em barracas nunca mais! Vale ressaltar que
a violência não se extinguiu com a proibição da cerveja em
garrafas, porque atrelado ao uso do álcool está o da cocaína, do
crack e entrou em cena a arma de fogo.
As
festas privadas surgiram sob a justificativa da violência nas festas
populares, um discurso da elite que vulgariza o popular em detrimento
do privado. No entanto, para a turista polonesa Madalena Paladina, 24
anos, que se divertiu em segurança, e conheceu a cultura encantadora
da Bahia, segundo nota publicada pela Secretaria de Comunicação do
Estado da Bahia8,
“É a primeira vez que participo da festa e adorei. É ótimo.
Este cortejo, de dia, é muito lindo. Há a presença de religiões
diferentes, harmonia, tudo misturado. Parece sem problema, a Bahia é
ótima”. Fato contraditório numa capital que pratica a
intolerância religiosa, onde terreiros são violados, demolidos,
mesmo quando são tombados pelo Patrimônio Histórico Nacional. A
mistura é uma maquiagem.
Atualmente
quem dita as normas é o consumo, o mercado, o capitalismo e a
privatização do espaço em sua totalidade. Toldos alugados e nem
todos disponibilizam de recurso para isso. A prefeitura cobra uma
taxa para todos os vendedores ambulantes que trabalham no trajeto.
Proibidos
os trios elétricos, emergem as festas privadas oferecendo conforto,
sofisticação, segurança e confraternização com bandas e os
melhores artistas de Salvador. Logo, as charangas, bandinhas que
acompanhavam o cortejo ficaram subjugadas. Agora a diversão tem
preço! Bonfim
Light
15º edição, atrações Tuca Fernandes, Tomate e Alexandre Peixe
Local: Bahia Marina (restaurantes Café do Forte, Ercolano e
Mercearia), às 13 horas. Preço:
R$
120,00
(Inteira) - Mulheres / R$
160,00
(Inteira) – Homens.
Enxaguada
du Bonfim Carlinhos Brown,
atração: Mariene de Castro, Márcio Victor do Psirico e Léo
Santana do Parangolé. Local: Museu du Ritmo. Preço:
R$ 40,00
(único).
Bonfim
Beach 2012
2ª edição, local, The Best Beach. Atração,
banda Caldeirão, Preço:
R$ 20,00
(Pista - Inteira), R$
40,00 (Camarote
- Inteira). Cais
Dourado,
às 14:00 h. Atração, Jau e Jorge Aragão e manifestações
culturais. Preço: R$
70,00
(Pista - Meia) / R$
120,00
(Camarote - Inteira).
Quinta
do Axé com Araketu,
no Largo Pedro Arcanjo, às 21:00h. Preço: R$
20,00
(único), propondo reunir grandes artistas e homenagear o candomblé
sob a bandeira de o bloco carnavelsco Araketu ter raízes no
candomblé. Essa homenagem pretende climatizar o ambiente como espaço
de um grande terreiro, com imagens cores e símbolos dos orixás.
Analisemos nesse panorama que a religião do candomblé é
folclorizada pelos seus devotos.
A
Lavagem do Bonfim se tornou um grande cenário político,
principalmente nos anos de eleição. Com personalidade civis e
militares. O início da lavagem acontece com o pronunciamento de
autoridades políticas da esfera estadual e municipal. Os políticos
saem diante do cortejo das baianas acenando para a população.
Contratam pessoas, bandas, oferecem camisetas com os seus nomes é
logomarcas de seus partidos. Eles vestidos de branco, não as baianas
são as atrações. Paulatinamente a Lavagem do Bonfim tomou
proporções diferenciadas sendo reservada às esferas politiqueiras
e da iniciativa privada o que também dizimou a Segunda-feira Gorda
da Ribeira. Outro fato inusitado, Carlinhos Brown sai com os
timbaleiros correndo e tocando até a Baixa do Bonfim, antes mesmo
das baianas.
Fatos
novos são notáveis e dignos de registro na Lavagem do Bonfim. Um
sinal de hipocrisia e intolerância religiosa. O Sargento Isidório
saiu às ruas com um bloco de percussão denominado ‘Timbaleiros de
Cristo’, afirmando que Deus é Democrata! Visitando os sítios dos
jornais online observei que as imagens veiculadas pela mídia
invizibilzam as baianas negras que estão no cortejo.
Enfim,
a Lavagem do Bonfim é um misto de intolerância religiosa católica
antinegra. No início os escravizados limpavam a igreja para a
Irmandade dos Brancos, no presente expulsa a mesma população do
interior de igreja e hoje lavam apenas os degraus da igreja. Aliado a
isso a exclusão da população negra na participação financeira do
lucro da festa A Lavagem se carnavalizou e se politicalizou, tornou
palco de comício político em ano de eleição, seguida da
exacerbação do consumo e das festas privatizadas
segregacionistas.
Bibliografia eletrônica
Bibliografia eletrônica
Disponível
em:
<http://www.culturabaiana.com.br/igreja-de-nosso-senhor-do-bonfim-padroeiro-dos-baianos/>.
Acesso 22 jan. 2012.
Disponível em:
<http://www.correio24horas.com.br/noticias/detalhes/detalhes-1/artigo/lavagem-do-bonfim-confira-as-melhores-opcoes-de-festas-fechadas/>
Acesso
em 15 jan. 2012.11:22
Disponível em:
<http://g1.globo.com/bahia/fotos/2012/01/galeria-reune-imagens-da-lavagem-do-senhor-do-bonfim-confira.html#F341597>Acesso
15 jan. 2012. 11:37
Disponível
em:
<http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/festa-modelo.php?festa=2>.
Acesso em 22 jan. 2012.
1
Doutoranda em Educação
Brasileira. Faculdade de Educação da Universidade Federal do
Ceará. Linha de Pesquisa: Movimentos Sociais Educação Popular e
Escola. Eixo Temático: Sociopoética, Cultura e Relações
Étnico-raciais. Fonte de fomento CAPES/PROPAG.
2
Festa de Reis ocorre no bairro
da Lapinha, em homenagem aos Três Reis Magos e encerra os festejos
natalinos, na primeira semana de janeiro. Nela ocorre um tríduo
preparatório e no 5º dia o desfile de vários Ternos de Reis que
vem de inúmeros bairros da cidade.
3
Ki-ZERBO, Joseph. Para Quando
África? Entrevista com René Holenstein. Tradução Carlos Aboim de
Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
4
SOARES, Emanuel Luís Roque.
Tolerância do Africano à Afrodescendência. In: O
Pensamento Pedagógico Hoje.
(Orgs.) VASCONCELOS. José Gerardo; SANTANA, José Rogério.
Fortaleza: Edições UFC, 2011
6
LUZ, Marco Aurélio de
Oliveira. Agadá: dinâmica
da civilização africano-brasileira.
2a Edição. Salvador: EDUFBA. 2000.
8
Nota publicada no dia 12 de janeiro disponível em:
<http://www.comunicacao.ba.gov.br/noticias/2012/01/12/tradicao-religiosidade-e-alegria-se-unem-pela-paz-na-lavagem-do-bonfim/print_view>.
Acesso 22 jan. 2012. 16:19.
Postado originalmente no blog Politica e Religiões Africanas.
Postado originalmente no blog Politica e Religiões Africanas.
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